Findado o carnaval, temos a quarta-feira de cinzas que não é um dia de lavar os pecados oriundos dos “excessos” do carnaval.
Na verdade, a quarta-feira de cinzas é um dia de jejum e reconhecimento da limitação humana, gesto este explicitado no simbolismo das cinzas:” ...tu és pó e ao pó hás de voltar” (Genesis 3,19), inaugurando assim uma trajetória de quarenta dias de reflexão, espiritualidade e preparação para a semana mais importante para os cristãos: a Semana que culmina na Páscoa, a ressureição de Jesus.
Nos textos bíblicos encontramos muitas aplicações do número 40, que simboliza o tempo de Deus. O dilúvio durou 40 dias e 40 noites (Gênesis 7,17). Antes de receber as tábuas da lei, Moisés jejuou durante 40 dias e 40 noites (Deuteronômio 9,9). Quarenta anos mais tarde teria liderado a libertação dos hebreus da escravidão no Egito. A travessia dos hebreus pelo deserto – o êxodo – rumo a Canaã, teria durado 40 anos (Êxodo 16,35). O profeta Elias “caminhou 40 dias e 40 noites até o Monte Horeb, a montanha de Deus” (1 Reis 19, 8). O próprio Jesus jejuou 40 dias (Marcos 1,13; Mateus 4,2; Lucas 4,2). Lucas informa que após a ressurreição, Jesus permaneceu 40 dias em companhia dos discípulos(Atos 1,3). Portanto, o número 40 é muito significativo na caminhada do povo de Deus.
A Quaresma foi instituída pela Igreja e se inicia na Quarta-feira de Cinzas e culmina no Domingo de Ramos - como tempo litúrgico que precede a Semana Santa e nos prepara para a Páscoa, ápice da vida de Jesus e promessa futura para o seguidores do Mestre de Nazaré.
Assim como os hebreus demoraram 40 anos para cruzar o deserto após se libertarem da opressão no Egito, e Jesus jejuou durante 40 dias antes de iniciar a missão que Lhe foi confiada, a Igreja recomenda aos cristãos, nesses 40 dias de Quaresma, a assumirem uma postura penitencial, tempo de reconhecer os pecados e projetar uma mudança de vida via sacrifícios, orações, jejuns e solidariedade humana (esmola).
Penitência não significa reconhecer as culpas. É muito mais do que isso. É fazer a travessia para um compromisso maior com atitudes de solidariedade. Postura amorosa e engajamento de justiça. Por isso, todos os anos, desde 1964, a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) lança na Quaresma a Campanha da Fraternidade que a cada ano adota uma motivação temática diferente. Neste ano de 2025, o tema é ecológico: “Fraternidade e ecologia integral” e o lema: “Deus viu que tudo era muito bom” (Genesis 1,31). A realidade da mudança climática está na pele e a destruição da natureza se converte em um grave pecado contra o próprio projeto de Deus que é a criação do mundo. Cuidar do planeta, da natureza, é investir para que no futuro haja alimento para todos, água de qualidade, ar respirável, alimentos mais naturais e sem agrotóxico e principalmente, cuidar do ser humano que faz parte intrinsicamente da natureza planetária.
Quaresma é também tempo de reabastecimento espiritual: oração, meditação, reflexão da Palavra de Deus, leituras espirituais, participação litúrgica. Sem reforçar a espiritualidade, corremos o risco de desanimar ou ficar indiferente diante das necessidades do nosso planeta para que ele continue oferecendo aos seres humanos as condições necessárias para sua sobrevivência.
Engana-se quem julga que “sacrifício” na Quaresma é apenas deixar de comer carne bovina, suína ou avícola, embora se farte de peixes e outros quitutes. Isso pode significar um descarado farisaísmo. Se queremos realmente viver a Quaresma na dinâmica da espiritualidade de Jesus,devemos dar um pouco de nós. Do nosso tempo, da nossa vida, das nossas posses. Um ditado popular diz que a parte mais sensível do corpo humano é o bolso (ou a bolsa). Quem quiser verdadeiramente viver esta quaresma, faça alguma coisa em prol da natureza e do irmão, principalmente os mais carentes. Na defesa da mãe terra, gestos simples podem fazer muita diferença: o cuidado na separação do lixo, evitar produtos descartáveis, não sujar os rios, não jogar lixo nas ruas e nas estradas, plantar uma horta no quintal de casa, proteger a natureza e os animais, plantar árvores ao invés de cortá-las, cuidar das fontes de água e tantas outras iniciativas visando proteger a grande obra que herdamos de Deus: este planeta lindo com suas águas, florestas, montanhas, seres vivos, o ar e tudo que nos circunda. Viver a espiritualidade nesta quaresma é mostrar no concreto do dia-a-dia o quanto respeitamos a obra da criação que Deus nos outorgou.