26/05/2025 às 13h59min - Atualizada em 26/05/2025 às 13h59min

Quando a mente se perde, o corpo precisa saber cuidar

Dr. Fernando Nader

Dr. Fernando Nader

Fernando Nader é médico, que tem entre suas formações, geriatria e neurologia.

Cuidar de alguém com demência é como amar alguém que, aos poucos, vai se afastando de si mesmo. É ver um corpo presente habitando uma memória falha, um afeto embaralhado, uma identidade em fragmentos. E o mais cruel disso tudo? É que não existe manual. O que existe é o dia a dia — com suas repetições, angústias, desafios e, vez ou outra, alguma ternura no meio do caos.

 

É comum que quem cuida sinta que está “perdendo a mão”. Que nada funciona, que as palavras não chegam mais, que o outro não reconhece mais nem o básico da convivência. Mas por trás de cada comportamento desafiador — da agressividade repentina ao choro sem motivo, da desconfiança absurda à hipersexualidade desconcertante — há algo maior: um cérebro em falência. E é aí que entra o que quase ninguém ensina: cuidar de alguém com Alzheimer ou qualquer demência exige mais instinto do que lógica. E mais paciência do que explicação.

 

Quando a pessoa grita, desconfia, ou acusa, não adianta argumentar. Essa parte do cérebro já falhou. Tentar explicar racionalmente que “ninguém escondeu sua bolsa” ou que “você já jantou” é só jogar gasolina no incêndio. A resposta precisa ser outra: gentileza, redirecionamento, leveza. Em vez de “isso é coisa da sua cabeça”, experimente “vamos procurar juntos?”. Parece detalhe, mas muda tudo. Porque a verdade é que eles não estão testando você — estão testando o pouco de realidade que ainda resta dentro deles.

 

Nos fins de tarde, quando tudo parece piorar, com agitação, confusão e irritação, o nome disso é “síndrome do pôr do sol”. E a resposta também não está num remédio. Está em abaixar as luzes, acalmar o ambiente, colocar uma música suave. É transformar o caos em colo. Às vezes, o simples gesto de sentar ao lado e segurar a mão devolve mais paz do que qualquer intervenção sofisticada.

 

Quando eles andam pela casa sem rumo, querendo sair ou tentando “ir embora”, é a ansiedade que se manifesta em movimento. Trancar portas é importante, mas acolher esse impulso com uma caminhada guiada, uma atividade simples ou até uma conversa inventada (“vamos arrumar essas toalhas juntos?”) pode ser mais eficaz do que tentar pará-los à força.

 

E quando a repetição se torna constante — a mesma pergunta mil vezes, a mesma história como se fosse novidade — lembre-se: a repetição não é provocação. É sintoma. Responder de novo, com paciência, mesmo fingindo que é a primeira vez, é um dos atos mais puros de amor em forma de cuidado. Se a mente está esquecendo, que o coração não esqueça de ser gentil.

 

Há momentos em que o silêncio domina. Eles se isolam, param de falar, se apagam aos poucos. E aí não adianta forçar interação. O caminho é outro: presença leve, convites sutis, estímulos afetivos — uma música antiga, um toque suave, um cheiro familiar. Respeitar o tempo do outro também é uma forma de dizer “estou aqui”.

 

Há ainda os episódios que chocam: frases com conotação sexual, toques inadequados. É desconfortável, sim. Mas é a doença falando, não a pessoa. Reorientar com calma, redirecionar a atenção, proteger sem punir — esse é o cuidado necessário. Quando a mente está desinibida pelo dano neurológico, cabe a quem cuida sustentar a ética e o afeto ao mesmo tempo.

 

E quando o sono vira bagunça, com noites em claro e dias dormindo, não adianta se desesperar. Criar rotina, evitar cochilos longos à tarde, apagar telas à noite, usar a luz do sol como guia biológico. Sono, para quem tem demência, precisa de estrutura — não de bronca.

 

No fim, o mais importante não é ter resposta para tudo, mas ser o que a pessoa não consegue mais ser para si mesma: segurança. Quando tudo desorganiza por dentro, você se torna a âncora do lado de fora. Não para controlar, mas para sustentar. Para acalmar. Para acolher.

 

Cuidar de alguém com demência é um ato que exige nervos de aço e um coração que amolece todos os dias. Você vai se cansar, vai querer desistir, vai se sentir invisível. Mas nunca se esqueça: enquanto a mente deles se apaga, você é quem mantém a luz acesa.

 

E, às vezes, só isso já é o suficiente para salvar os dois.

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